
Para a pesquisadora, combater a concentração de terras ainda é ferramenta para reduzir a fome, diminuir a injustiça social, fazer reparações à população negra e mitigar a crise climática
A alta dos preços dos alimentos observada nos últimos meses no Brasil tem como um dos fatores a falta de uma política consistente de reforma agrária. A avaliação é de Yamila Goldfarb, doutora em ciências humanas pela USP e presidenta da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária). Divulgamos a seguir uma entrevista que a pesquisadora deu recentemente para a Repórter Brasil, por ocasião do Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária, celebrado em 17 de abril, quando fala sobre a questão da fome e também sobre a relação do agronegócio com a extrema direita, as dificuldades encontradas pelo governo Lula para implementar a reforma agrária e a importância dessa política como medida de reparação para a população negra. Yamila destaca que há um déficit de oferta de alimentos que seria suprido pela reforma agrária, com mais famílias tendo acesso à terra e, portanto, podendo produzir alimento.

tensões sociais nas zonas urbanas – Foto: Codevasf
Para ela, a oferta de alimentos deve ser uma das medidas de combate à fome. Mas, ao contrário do que propaga, o agronegócio não supre o mercado interno, além de ser responsável por danos ambientais e conflitos no campo. O agronegócio implementou uma estratégia política e midiática de se fazer valer como sendo tudo e todos, sendo o motor da economia brasileira, representando o campo brasileiro, e essas duas afirmações são mentirosas. Yamila argumenta que a modernização do campo a partir da década de 1990 abriu margem para o discurso de que a reforma agrária não é mais necessária, ideia que considera um equívoco. Para ela, não somente a reforma agrária sempre se manteve atual, como ela ganha uma nova importância hoje frente à questão climática.
Muitos, inclusive na grande mídia, reforçam o discurso do agronegócio de que a reforma agrária não faz mais sentido, mas Yamila afirma que esse discurso está bem envelhecido, provavelmente originado na década de 90. Para ela, a partir do momento em que o latifúndio foi se transformando no agronegócio, foi sendo construída a ideia de que a modernização do campo já teria feito a produção ser suficiente para abastecer tanto a cidade quanto as indústrias. Mas o que se vê agora é o quanto essa ideia é um equívoco, pois o que se vê no momento é que a crise do preço dos alimentos tem a ver com uma ausência de reforma agrária. Há poucas famílias e uma porcentagem muito pequena da área agricultável produzindo alimento de fato.

ainda estão em situação de fome, miséria e insegurança alimentar

de alimentos, dando lugar a grandes monoculturas – Foto: Sergio Lima/AFP
A maior parte do território brasileiro produz commodities para exportação, que não é alimento propriamente dito. É algodão, é celulose, é soja que não necessariamente se transforma em comida que vai para a mesa dos trabalhadores. O agronegócio não supre o mercado interno. Então, há ainda um déficit de oferta de alimentos que seria suprido pela reforma agrária, com mais famílias tendo acesso à terra e, portanto, podendo produzir alimento. Há ainda uma gama de questões relacionadas à justiça social que dependem da reforma agrária. Yamila destaca que não temos como superar o racismo, inclusive, se não superarmos a questão agrária. Além disso, não tem como combater a mudança climática se não tiver reforma agrária e os direitos territoriais garantidos de todos os povos e comunidades tradicionais, porque são esses segmentos do campo que, pelo seu modo de vida, vão produzir respeitando o meio ambiente, garantindo as condições ecossistêmicas, os ciclos hidrológicos, o reflorestamento. Não só a reforma agrária sempre se manteve atual, como ela ganha uma nova importância hoje frente à questão climática, mas o discurso hegemônico do agronegócio é tirá-la de pauta.
Yamila continua: o agro não é o motor da economia. Embora garanta uma balança comercial superavitária, não garante um equilíbrio na conta corrente brasileira, nas contas externas. Quando considera-se tudo o que entra e sai do país, incluindo lucros e dividendos, royalties, frete, assistência técnica, remessas ao exterior, todos esses elementos que compõem a conta corrente brasileira, o país é profundamente deficitário. E é um setor que muito mais recebe benefícios do que contribui. É uma relação parasitária com o Estado brasileiro. Para não deixar essa situação evidente para a população, o agronegócio precisa construir essa imagem de que é muito importante para o país, não podendo ser visto como parasita dos cofres públicos. E aí, claro, tira a reforma agrária de cena, ela deixa de ser necessária. Essa imagem foi muito construída a partir da campanha “O agro é tech, o agro é pop, o agro é tudo” capitaneada pela Rede Globo, a maior rede de televisão brasileira, e divulgado massivamente por muito tempo.
Quando ele se transforma no agro e não mais no agronegócio, ele tenta abarcar todo mundo, inclusive a agricultura familiar. Mas ele não é tudo, porque na hora de disputar política pública e, principalmente, orçamento, há muita diferença entre quem é agronegócio e quem é agricultura familiar. O estudo “O agro não é tech, o agro não é pop e muito menos tudo” publicado em 2021 e de autoria de Yamila Goldfarb e Marco Antonio Mitidiero Junior já mostrava como o agronegócio não é interessante para o país do ponto de vista econômico. Os autores questionam, por exemplo, quanto ele emprega de força de trabalho, e percebe que é um dos setores que menos emprega.

contribui do ponto de vista tributário e é um dos setores que menos emprega
Em relação ao PIB, o agronegócio contabiliza em torno de 30%, mas esse cálculo considera cadeias produtivas inteiras: desde a porteira adentro até o processamento, equipamento e a distribuição desse produto alimentício. Fazem uma mágica da multiplicação. Mas se for considerado, como colocado no estudo, somente porteira adentro, chega-se a cerca de 8%. Também se fez uma avaliação de quanto o setor paga de impostos. Como existe a Lei Kandir (Lei Complementar nº 87, de 13 de setembrode 1996), que isenta, entre outras coisas, a exportação de bens primários, é mais vantajoso para o agronegócio exportar do que vender para o mercado interno. Também não paga imposto sobre o que é considerado insumo. Essas diferentes isenções geram uma situação de muito privilégio para esse segmento. É um setor que na verdade não contribui do ponto de vista tributário, além de todo o arrolamento de dívidas que se faz continuamente. Ao mesmo tempo, o agronegócio abocanha grande parte do crédito.
Em relação à produção de alimentos, observando os dados do Censo Agropecuário do IBGE, observa-se que quem está produzindo fruta, verdura, legume, não é o agronegócio, é a agricultura familiar. Assim, avaliando-se com base em critérios mais econômicos, conclui-se que o agronegócio não é interessante para o país, para além do desmatamento, da grilagem de terra, dos conflitos.
Sobre a relação do setor com a ascensão da extrema direita no Brasil, Yamila destaca que o agronegócio foi muito responsável por ventilar o próprio nome do Bolsonaro para a presidência. Ele não tinha grande importância até que o setor começou a ventilá-lo como uma verdadeira opção política. Isso se deve muito ao Nabhan Garcia, que, depois, vai assumir a Secretaria de Assuntos Fundiários do ex-presidente. O agronegócio percebeu que a extrema direita lhe é muito útil, pois, principalmente a partir da Constituição de 1988, sempre teve de se manter de alguma maneira limitado. Tanto os direitos indígenas como a questão ambiental sempre foram pedras no sapato para o agronegócio mais atrasado e violento, e até mesmo para o mais moderno.

secretário de assuntos fundiários do ex-presidente “o 23° ministro”
Segundo Yamila, quando aparece a extrema direita chutando o balde, o agronegócio a identifica como um aliado e passa a incentivar a extrema direita, pois com ela, libera tudo. Libera inclusive a arma, e aí vê-se o quanto a violência no campo se mantém. O quanto os territórios com mais conflitos são os indígenas e de comunidades tradicionais, porque são os territórios mais que se mantiveram preservados. E o agronegócio precisa avançar a fronteira agrícola onde está preservado. Então a extrema-direita passa a ser muito útil.
O terceiro mandato do governo do presidente Lula vem sendo bastante cobrado em relação à reforma agrária. João Pedro Stédile, líder do MST, vem criticando bastante o governo por não avançar nesse tema. Para a pesquisadora, o desafio hoje passa muito pela questão da obtenção de terras para fazer a reforma agrária. Tem havido uma judicialização dos processos de desapropriação. Além disso, depois da crise econômica mundial de 2008, houve uma migração de uma parcela do capital financeiro para o mercado de terras e de commodities. O preço das terras aumentou muito, o que tornou muito mais difícil a modalidade de aquisição de terras pelo governo por meio da compra.

por lentidão na reforma agrária – Foto: Lula Marques/Agência Brasil
A pesquisadora lembra que há uma questão orçamentária e que dever ser considerado que houve um desmonte brutal do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) durante o governo anterior. Há também uma bolsonarização de boa parte dos funcionários públicos de carreira, o teto de gastos, uma série de empecilhos. Ao mesmo tempo, é preciso correr contra a maré, porque os estados estão de fato legalizando a grilagem de terras. É o caso de São Paulo, por exemplo, onde há a Lei nº 17.577, de 21 de julho de 2022, que o governador Tarcísio de Freitas está implementando e sobre a qual há pedido de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. A legislação permite a venda de terras que estão irregulares para os fazendeiros, com 90% de desconto, ou seja, entrega a terra grilada. Assim como essa lei de São Paulo, há várias em outros estados, principalmente nos amazônicos. São proporções gigantescas de terra que estão sendo perdidas. Terras que muitas vezes eram da União, foram passadas aos estados e estes estão legalizando a grilagem.

Foto: Mônica Andrade/Governo do Estado de SP
Para Yamila, esse debate deve ser feito com a sociedade brasileira, pois para ela, nem o governo Lula está mostrando a importância de se fazer a reforma agrária. Lembra que o governo Bolsonaro editou a Instrução Normativa Incra n° 112, de 22 de dezembro de 2021 que permite mineração e grandes empreendimentos em área de assentamento rural e essa mediada, até o momento não foi revogada. Enquanto isso, a mineração é um setor que está entrando violentamente nas áreas de assentamento.
Ela avalia que as políticas governamentais agrícolas e agrárias dos últimos governos e a opção pelo modelo de produção do agronegócio, são alguns dos fatores causadores do problema da fome no Brasil. Uma das dimensões da segurança alimentar é o acesso, ou seja, no caso brasileiro, as famílias precisam ter condições financeiras para acessar os alimentos e, nesse ponto, a distribuição de renda é um elemento fundamental. Mas não adianta ter essa dimensão garantida se outra dimensão, a da disponibilidade, também não existir. É por isso que insiste que que um dos problemas da fome no Brasil é a oferta de alimento. É preciso ter mais oferta de alimento, atrelada a uma política de abastecimento que garanta uma distribuição de forma mais racional e regionalizada.
Ela observa que tem o costume de sempre visitar os mercadões locais em toda cidade que visita, sempre perguntando de onde vem a produção e, na maioria das vezes, o alimento é proveniente de São Paulo. A pessoa está no Mato Grosso, o maior exportador de soja do mundo, e o alface vem de São Paulo. Ela perqunta: a que preço vai chegar esse alface? Então, é preciso uma política de abastecimento que pense as regiões do Brasil, respeite os hábitos alimentares e estimule circuitos curtos, o que permitiria a oferta de produtos mais saudáveis e a melhoria da renda para o produtor. Essa política foi desmontada e vem sendo reconstruída de alguma maneira agora. Assim como foi desmontada também a política de estoques públicos. Os mais liberais ficam de cabelo arrepiado porque acham que é intervencionismo. Só que se não há estoque público, não tem como garantir um preço mínimo para o produtor e um preço máximo para o consumidor. E sempre o mais prejudicado é o mais necessitado.


a segurança alimentar e nutricional, comprando alimentos da agricultura familiar
para distribuir a populações em situação de vulnerabilidade social
Yamila enfatiza que o governo precisa poder jogar com a oferta e demanda, tendo o poder de disponibilizar alimentos quando há uma crise num estado como aconteceu com as enchentes no Rio Grande do Sul, por exemplo ou quando ocorreu a greve de caminhoneiros, quando as granjas iam sacrificar os frangos se não existisse o estoque da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) para fornecer ração para esses estabelecimentos. Trata-se de uma intervenção necessária para garantir alimento para a população nos momentos de crise, como eventos climáticos extremos ou uma pandemia. É uma conjunção de medidas: oferta, controle dos estoques, políticas de incentivo à produção e de distribuição, renda das famílias.
E vai mais longe. Em outro artigo, Yamila defende que a reforma agrária seria uma política de reparação histórica para a população negra no Brasil. Segundo ela, existe uma indissociabilidade entre a questão agrária e a questão racial no Brasil. Na época colonial, o que dava valor às fazendas eram os trabalhadores escravizados. Quando a pressão externa pela abolição da escravatura começou a se intensificar, os senhores de escravizados se prepararam e fizeram a Lei de Terras (Lei n° 601, de 18 de setembro de 1850). A terra, antes uma concessão da Coroa portuguesa, passou a ser propriedade privada. Então, mais adiante, o Brasil faz esse processo de libertação dos escravizados sem reparação alguma, tirando deles a possibilidade de acesso à terra, pela compra, e também de acesso à educação. Os senhores passam a ser ser donos da terra podendo negociá-la.

pela fome, pois são geralmente as responsáveis pela garantia do alimento nos lares
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
E, durante a ditadura militar, ocorre a expulsão das pessoas do campo, a grande maioria, negras. Foram expulsas à bala, com fogo sendo ateado nas suas casas. É assim que se deu a tal modernização agrícola. Tudo isso faz com que a sociedade tenha uma dívida monstruosa com a população negra. Esses processos que foram incentivados pelo Estado e a reparação só poderá ser coletiva, com a reforma agrária e a garantia dos direitos territoriais de todos os povos e comunidades tradicionais. Para ela, ainda existe um componente de gênero no debate da reforma agrária, pois as mulheres, e particularmente as mulheres negras, são as mais penalizadas pela fome, por exemplo, pois são geralmente as responsáveis pela garantia do alimento nos lares. Além disso, há um processo de envelhecimento do campo que penaliza mais as mulheres, gerando uma sobrecarga sobre elas. E a reforma agrária seria uma maneira de atrair os jovens e equilibrar um pouco essa situação.