A forma de fazer o açaí na cidade é uma tradição dos povos originários, assim como tantas outras atividades extrativistas na região
O primeiro açaí a receber certificado de origem no Brasil é de Feijó/AC. A 363 quilômetros da capital do estado Acre, a cidade de Feijó é conhecida como a Terra do Açaí. O produto está tão integrado à cultura local que também dá nome ao festival mais popular da cidade, reunindo centenas de pessoas como uma forma de cultuar o fruto da palmeira Euterpe precatoria, chamada de açaí solteiro, nativa da Amazônia, e protagonista na cultura e história do município.
Aí é preciso uma explicação. A espécie Euterpe oleracea tem predominância de caules cespitosos (crescem lançando novos brotos ou caules de maneira aglomerada, geralmente formando uma touceira ou espesso tapete), com até 35 estipes de 3 a 20 m de altura e diâmetro de 7 a 18 cm. Ocorre nas regiões Norte (Amapá, Pará e Tocantins), na porção Oriental, formando densas populações próximas aos rios que formam o Estuário Amazônico, e Nordeste (Maranhão) (Mapa 1). Já a espécie Euterpe precatoria é monocaule de 3 a 23 m de altura e de 4 a 23 cm de diâmetro, ou raramente cespitoso, palmito fino e liso no topo. Está distribuída apenas na região Norte, ocupando, predominantemente, o lado Ocidental, nos estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Pará, com a variedade longevaginata estando restrita ao Acre, na Serra do Divisor, que faz fronteira com o Peru (Mapa 2).
Os produtores locais consideram a fruta a “pedra preciosa da floresta” e agora estão comemorando uma recente conquista: o açaí de Feijó agora é considerado, de fato e de direito, um dos melhores do país. Em setembro deste ano, o fruto cultivado nas terras feijoenses recebeu a Indicação Geográfica (IG) dada pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), sendo a primeira certificação do país para este produto. Antes disso, o açaí cultivado no Arquipélago do Bailique, na foz do Amazonas, havia recebido a certificação Forest Stewardship Council (FSC), que atesta que o açaí é extraído de forma responsável, com manejo sustentável.
Já a IG dada ao açaí de Feijó reconhece as características do produto pelo seu local de origem, o que lhes atribui reputação e identidade própria. Produtos com esse reconhecimento apresentam uma qualidade única em função de recursos naturais como solo, vegetação, clima e a forma como é cultivado.
O açaí produzido em Feijó é conhecido por sua espessura e sabor. Os açaizeiros possuem a genética intrínseca da região. São cultivados de acordo com as técnicas tradicionais da localidade, em conjunto com as boas práticas agrícolas e ações mitigadoras de impactos ambientais, visando à sustentabilidade. A forma de fazer o açaí na cidade é uma tradição dos povos originários, assim como tantas outras atividades extrativistas na região.
O açaí com certificado de origem somente poderá ser colhido maduro. Embora outras formas mais atuais de extração também sejam praticadas, pelo método tradicional o coletor usa o próprio corpo para escalar o açaizeiro e retirar os cachos do fruto. Para isso, ele utiliza a peçonha, um utensílio amazônico similar a um cinto, empregado na escalada de árvores e comumente fabricado a partir de fibras naturais.
Os frutos devem ser beneficiados no máximo 24 horas após a coleta. Desta forma, o produto, transformado em polpa, possui um sabor típico, doce por natureza, de espessura mais grossa e coloração arroxeada bastante concentrada.
A região
De acordo com a documentação (dossiê de notoriedade) apresentada ao INPI, o açaí cultivado e extraído do município de Feijó é considerado por muitos críticos como o melhor do Brasil, muito utilizado na produção de alimentos e bebidas, sendo atualmente o principal produto do município acreano. A produção local acontece durante o ano todo, em regiões distintas do município, com área de 24.202 km², o segundo maior do Acre.
A Cooperativa de Produtores, Coletores e Batedores de Açaí de Feijó (AÇAÍCOOP FEIJÓ), que foi a requerente do pedido de IG, afirmou que a expressão “açaí de Feijó”, muito usada pelos acreanos, funciona como uma espécie de garantia de qualidade e sabor. Em Feijó, o açaí vai além de um alimento. Ele conecta as pessoas com uma identidade forte e geograficamente muito bem delimitada: “o açaí de Feijó”. É possível encontrar a cor roxa do fruto na pintura de muitas casas, fachadas de instituições de ensino, espaços recreativos e até na pintura dos veículos de táxi locais. A tinta roxa na cidade é mais cara.
Foi demonstrado ainda que a expressão “Feijó, terra do açaí” está presente em diversas imagens e até nas placas de boas-vindas à cidade. Por todo o exposto, ficou comprovado que Feijó se tornou conhecido, local e regionalmente, como centro de extração e produção de açaí.
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O Festival do Açaí de Feijó
Feijó é sede de grandes eventos relacionados ao fruto, como o Festival do Açaí de Feijó – iniciado em 1999, já teve mais de 24 edições de maneira ininterrupta, sempre em agosto. Este festival mobiliza o estado inteiro. Além de poderem saborear o melhor açaí do Brasil, os festeiros podem curtir shows de celebridades locais e nacionais, o que faz com que o festival tenha muito crédito com a população acreana.
A última edição reuniu, segundo a organização, 53 mil pessoas. Nos três dias de evento, empreendedores expuseram seus produtos e movimentaram a economia da cidade. O próximo passo é tornar o Festival do Açaí um bem cultural e imaterial do estado. O evento tem solidez que permite pleitear o Festival do Açaí como o primeiro festival acreano a ser registrado como bem cultural e imaterial do estado. Todas edições têm registros, então existe um material histórico importante para comprovar a sua importância para a cidade. Ao longo destes anos, a participação popular tem aumentado e o evento se tornou um dos mais tradicionais da região.
A certificação
A certificação foi resultado de um trabalho desenvolvido pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) do Acre, governo estadual, através da Fundação de Cultura Elias Mansour (FEM) com a DPHC – Divisão de Patrimônio Histórico e Cultural e pelo NEPHI – Núcleo de Estudos e Pesquisas do Patrimônio Histórico Imaterial, produtores, agricultores e associações da cidade. Um processo que começou ainda em 2021 com levantamento de todos os dados e a organização dessa estrutura econômica entre os produtores de açaí.
O projeto objetivou registrar a complementação histórica do Dossiê de Notoriedade da região produtora do açaí de Feijó, através de um material audiovisual e escrito elaborado por meio de pesquisa bibliográfica, entrevistas de campo, reuniões com lideranças locais, produtores, agricultores e associações.
Realizou-se um diagnóstico do território, pleiteando ao que os normativos do instituto solicitavam, juntada do dossiê, capacitação dos produtores para adequarem e estarem aptos a emitir os documentos junto ao INPI e no dia 12 de setembro se teve a emissão da IG. Agora, o açaí de Feijó é um dos 108 produtos com identificação geográfica no Brasil reconhecido pelo INPI, sendo 14 deles da Amazônia.
Produtos amazônicos com selo de Indicação Geográfica (IG)
-Farinha de mandioca de Cruzeiro do Sul (AC)
-Açaí de Feijó (AC)
-Tambaqui, peixe amazônico, in natura e processado de Ariquemes (RO)
-Café em grão Robusta Amazônico de Cacoal (RO)
-Pirarucu manejado de Tefé (AM)
-Guaraná de Maués (AM)
-Abacaxi de Itacoatiara (AM)
-Peixes ornamentais de Barcelos (AM)
-Waraná (guaraná nativo) e pães de waraná (bastão de guaraná) de Parintins (AM)
-Farinha de mandioca de Uarini (AM);
-Farinha de mandioca de Bragança (PA)
-Queijo do Marajó (PA)
-Cacau de Tomé-Açu (PA)
-Artesanato em capim dourado produzido em Palmas (TO), na região do Jalapão
A concessão da IG, no entanto, não significa o fim do processo. Pelo contrário, é o começo. A partir de agora, produtores e diversos atores desse mercado precisam se enquadrar nos requisitos técnicos para manter a qualidade do produto e emplacá-lo no mercado não só nacional, mas também internacional. Inicia-se agora uma terceira fase, que é a de capacitações, participação do produto e produtores em feiras, rodadas de negócios, concursos, ou seja, a parte de promoção do produto.
Os produtores organizados
Há dois anos, a cadeia do açaí em Feijó passou a se organizar em torno da Cooperativa de Produtores, Coletores e Batedores de Açaí de Feijó (AÇAÍCOOP FEIJÓ), que reúne atualmente cerca de 60 cooperados, entre produtores, coletores e batedores (locais de processamento e coleta do açaí). A entidade foi importante para a conquista da certificação.
A cooperativa está se ajustando e ainda não tem uma estrutura física. O objetivo nesse momento é organizar esse sistema para tentar atingir novos mercados e investidores e ter um real controle da produção. A organização espera uma das maiores safras dos últimos 10 anos em 2024 e precisa estar preparada para essa colheita.
O município tem duas safras diferentes, mas o ápice é entre fevereiro e março. Uma das safras ocorre às margens dos rios Envira e Jurupari e a outra na safra da terra alta, à margem da BR, que vai de junho até início de outubro. Uma safra completa a outra. Por isso, Feijó é considerado especial por ter essas duas safras.
Nos últimos anos, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) está auxiliando os extrativistas no processo de domesticação da espécie, pesquisando como plantar, qual espaçamento entre plantas, como preparar a muda, qual adubação fazer e como controlar pragas e doenças, pois esse é um processo que vem se firmando na região. Muitos produtores estão retirando mudas da mata e plantando próximo de suas residências facilitando em muito o manejo e produção.
Para a Embrapa é muito importante estimular o plantio do açaí-solteiro, que é nativo e está mais adaptado aos solos e clima do Acre. Mesmo que demore 8 anos, é preciso estimular o plantio da espécie. Para tanto, conceitos agroflorestais podem ajudar no cultivo da planta, como a alternativa de plantar o açaí-solteiro com banana e em consórcio com outras espécies de ciclo mais curto. Assim, o produtor tira renda da área com outras culturas até o açaí começar a produzir.
O trabalho de conservação
A certificação contribuiu para a capacitação das comunidades que vivem da produção do açaí, valorizando a mão de obra, padronizando o produto e contribuindo para a questão ambiental no município. Feijó é uma das cidades que lidera o ranking de desmatamento e queimadas e o extrativismo pode ser um aliado para mudar esse cenário.
Uma grande preocupação dos produtores é o desmatamento por conta da pecuária destruir a floresta que abriga um patrimônio considerável da espécie que gera riqueza para a comunidade. As cadeias da sociobiodiversidade, da bioeconomia, podem ser um vetor importante. São milhares de extrativistas no Acre que têm no açaí parte da sua fonte de renda. São importantes iniciativas, tanto de inovação tecnológica, como também de políticas públicas, que consigam apoiar essas populações para que possam agregar valor ao produto através da biodiversidade, da bioeconomia, uma bioeconomia inclusiva, que inclua as pessoas no mercado, que elas tenham oportunidade de melhorar a renda e tenham oportunidade de mudar sua qualidade de vida fazendo o uso sustentável dos recursos naturais.
É necessário se apropriar do selo de qualidade para alcançar mercados específicos, sendo imprescindível o engajamento dos produtores ligados à IG para o fortalecimento do associativismo e cooperativismo, por ser a única forma de se obter um grau maior de desenvolvimento comunitário e econômico. Os produtores da região precisam de crédito para a construção de uma agroindústria e assim poderem comercializar em mercados e precisarão agregar valor à produção e serem protagonistas deste arranjo. A floresta oferece os seus produtos, os extrativistas se beneficiam dos mesmos e, ao mesmo tempo, cuidam da floresta.
Confira a publicação da IP Feijó na seção de Indicações Geográficas da RPI nº 2.749 CLICANDO AQUI