Espécie minúscula e alaranjada descoberta em local restrito da Serra do Quiriri, em Santa Catarina, reforça urgência de conservar a Mata Atlântica
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva ganhou um presente antes do Natal. Ele passou a dar nome à mais nova descoberta da biodiversidade brasileira, um animalzinho que chama a atenção por suas peculiaridades. Ele integra o grupo dos “pumpkin toadlets”, literalmente “sapos-abóbora”, apelido usado pela ciência para designar pequenos sapos de coloração laranja intensa e distribuição extremamente restrita na Mata Atlântica. A descoberta e descrição foi liderada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e foi publicada num artigo na revista científica PLOS One. O anfíbio brasileiro foi batizado de sapinho-abóbora e nomeado cientificamente de Brachycephalus lulai. Sim, o “lulai” de seu nome científico é uma homenagem ao presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O “i” em “lulai” é uma marca formal de homenagem em latim, exigida pelas regras internacionais de nomenclatura zoológica. Ele transforma Lula (nome próprio português) em lulai (epíteto específico latino), criando um nome científico válido e permanente para uma espécie nova. É como um registro que liga a espécie ao presidente Lula de forma oficial na ciência.
Sua descoberta reafirma a Mata Atlântica como um dos biomas de maior biodiversidade do mundo. Segundo o biólogo Luiz Fernando Ribeiro, pesquisador do Mater Natura (Instituto de Estudos Ambientais), os pesquisadores resolveram homenagear o presidente, porque durante os seus governos foram criadas mais unidades de conservação no Brasil do que em qualquer outro momento. A dedicatória tem como objetivo incentivar políticas que ampliem a conservação da Mata Atlântica e reforçar a urgência de proteger animais minúsculos e altamente endêmicos. E proteção é tudo o que a a região do achado precisa. Além de Ribeiro e de pesquisadores das universidades Estadual Paulista (Unesp), Federal do Paraná (UFPR), integram a equipe, cientistas de instituições do Reino Unido, Alemanha e Estados Unidos. A pesquisa teve o apoio da Fundação Grupo Boticário.
A equipe buscou documentar melhor a variação
individual de todas as espécies de Brachycephalus
no sul do Brasil, procurando-as em campo nos
últimos sete anos. Como resultado deste trabalho,
foi descrita uma população coletada na encosta
leste da Serra do Quiriri como uma nova espécie,
com base em diversas características diagnósticas


alimentam importantes bacias hidrográficas da região
Foto: ICMBio

a nova espécie ocorre em área restrita do topo da montanha
Foto: Luiz Fernando Ribeiro/Mater Natura
Habitat
O bichinho tem a cor de uma abóbora, mas passou séculos sem ter sido visto. Apesar da aparência chamativa, o animal é extremamente difícil de ver. Ele vive oculto sob a camada de folhas secas (folhiço ou serrapilheira) que cobre o solo da mata, onde sua cor vibrante contrasta com o ambiente, mas seu tamanho reduzido o torna praticamente invisível a olho nu. Tem tamanha resiliência, que retira da umidade das plantas a água de que precisa para viver. Ele vive somente nas florestas das encostas da Serra do Quiriri, no município de Garuva, no nordeste de Santa Catarina, junto à divisa com o Paraná, onde foi encontrado, um dos últimos remanescentes da devastada Mata Atlântica do sul do Brasil.
A espécie é exclusiva dessa região, pertencendo a um grupo de sapos conhecidos como pingos-de-ouro por suas cores exuberantes e tamanho diminuto. Muitos deles são venenosos, pois a toxina que produzem é uma forma de defesa para quem é tão pequeno, mas não se sabe ainda se o sapinho do Lula tem algum tipo de veneno. O bichinho foi encontrado exclusivamente acima de 750 m de altitude, em um trecho muito específico da serra, cercado por neblina constante e vegetação densa, em locais de difícil acesso e apenas em determinadas épocas do ano, o que dificultou bastante o estudo que levou anos para ser concluído. É um ambiente isolado, capaz de gerar espécies únicas que não são encontradas em nenhum outro lugar do planeta.
A equipe buscou documentar melhor a variação individual de todas as espécies de Brachycephalus no sul do Brasil, procurando-as em campo nos últimos sete anos. Como resultado deste trabalho, foi descrita uma população coletada na encosta leste da Serra do Quiriri como uma nova espécie, com base em diversas características diagnósticas

Brachycephalus lulai cabe facilmente na ponta de um lápis
Foto: Luiz Fernando Ribeiro/Mater Natura

laranja descoberta no Sul do Brasil, vive em
áreas isoladas e úmidas da Mata Atlântica
Foto: Luiz Fernando Ribeiro/Mater Natura
O sapinho
O sapo que homenageia o presidente faz parte do gênero Brachycephalus, grupo que possui 35 espécies já catalogadas anteriormente. É pouco maior que um grão de arroz, porém, a potência de sua voz faz com que se faça ouvir na floresta. Considerado um dos menores animais vertebrados da Terra, os espécimes adultos são pequenos o suficiente para caberem na ponta de um lápis. Os machos medem cerca de 8 mm de comprimento e as fêmeas são maiores, chegando a 13,4 mm. A diferença de tamanho se explica pela necessidade de as fêmeas carregarem os ovos, pesados para suas diminutas dimensões. Estes são depositados no solo da mata e não na água, como é da natureza dos sapos, e os B. lulai nem precisam passar pela fase de girino. Diferentemente dos filhotes da maioria dos sapos, rãs e pererecas, eles já nascem formados, microssapinhos, quase invisíveis a olho nu.
O outra característica que chama bastante atenção é sua cor alaranjada bem forte. Além da cor, o canto do sapo chamou a atenção dos pesquisadores que localizaram os machos ao ouvir seus chamados de acasalamento, graves e discretos. Para localizar os animais, os pesquisadores dependem de um ouvido treinado para identificar seus chamados quase imperceptíveis, muitas vezes mais parecidos com o som de um grilo do que com o coaxar típico dos sapos. De fato o que motivou o estudo do sapinho foi esse canto de acasalamento. Ao contrário de outros exemplares do gênero, em busca da atração de uma fêmea, os machos se juntam e cantam rapidamente, com apenas duas rajadas curtas de som. As fêmeas, mais silenciosas, foram encontradas de maneira aleatória durante as buscas no chão da floresta. Outra peculiaridade é que os sapinhos lula são diurnos — a maioria dos sapos sai à noite.

acasalamento, graves e discretos. As fêmeas, mais silenciosas, foram
encontradas de maneira aleatória durante as buscas no chão da floresta
Foto: Luiz Fernando Ribeiro/Mater Natura
Esse trabalho de campo é árduo. Todo ano, as expedições começavam em outubro e seguiam até o fim do verão, com longas caminhadas pela mata fechada, trilhas íngremes com duração de até oito horas, podendo estenderem-se pela noite. No laboratório, o desafio se deveu ao fato de que muitas espécies serem extremamente parecidas entre si, o que exigia análises minuciosas. Para isso, os pesquisadores contaram com ferramentas de alta tecnologia, como a microtomografia, que permite visualizar o esqueleto dos animais em 3D sem causar danos aos próprios exemplares. As imagens revelam detalhes sutis da estrutura óssea, essenciais para distinguir espécies quase idênticas. Paralelamente, eles analisaram partes do DNA de cada nova espécie, construindo uma espécie de “árvore da família” que mostrou como cada sapo se relaciona com os outros do grupo ao longo da evolução. Essas tomografias computadorizadas para estudos de morfologia, investigações genéticas de DNA e estudos de bioacústica confirmaram posteriormente que tratava-se de um exemplar não catalogado entre os anfíbios Brachycephalus.

o exame osteológico – Foto: Luiz Fernando Ribeiro/Mater Natura
Cuidados para a conservação da espécie
O sapinho é evidência de que ainda há imensa biodiversidade escondida na Mata Atlântica que a humanidade desconhece, biodiversidade, esta, das mais frágeis do planeta. Os sapos da mesma família do B. lulai vivem apenas na serrapilheira e dependem da proteção da copa das árvores para que a umidade seja mantida. Com o desmatamento, desaparecem. Também são sensíveis à elevação da temperatura, e o aquecimento associado às mudanças climáticas é um inimigo letal.
Para esse grupo de anfíbios, qualquer alteração ambiental como queimadas, abertura de trilhas, turismo desordenado ou avanço do gado pode colocar populações inteiras em risco. Isso significa que os sapinhos do gênero Brachycephalus são considerados verdadeiros termômetros ecológicos. Identificar novas espécies e entender sua distribuição ajuda a mapear áreas de maior vulnerabilidade e orientar decisões de conservação.

em três quedas – Foto: Piraí Turismo de Aventura

ajudaria a proteger maior contínuo florestal de Mata Atlântica

do Araçatuba (vermelho) no Paraná, e Quiriri (verde) em Santa Catarina
No caso do B. lulai, os cientistas classificaram a espécie como de “menor preocupação”, já que o habitat em que vive ainda é considerado relativamente preservado. Mas o mesmo não pode ser dito de seus parentes próximos, que enfrentam ameaças crescentes em outras áreas de Santa Catarina. Se não bastassem tantas ameaças para um animal tão pequeno, ele, como a maioria dos anfíbios, é potencialmente vulnerável a um fungo que tem dizimado esses animais em todo o mundo.
No estudo, os pesquisadores propõem a criação de uma unidade de conservação. Mais especificamente, um Refúgio de Vida Silvestre (RVS), tipo de unidade de conservação integral que não demanda desapropriação de terras particulares pelo governo. A nova espécie é encontrada próxima a outros anuros endêmicos e ameaçados, justificando a proposta de criação da unidade que ajudaria a garantir tanto a manutenção quanto a possível melhoria do estado de conservação dessas espécies. Existe também a proposta de criação do Parque Nacional das Serras do Araçatuba e Quiriri, na divisa entre Paraná e Santa Catarina, que saiu do discurso militante e hoje está nas mesas do Ministério do Meio Ambiente e do ICMBio.
Há quem tenha medo ou nojo dos sapos. Mas eles são essenciais para a existência da Mata Atlântica. Ajudam a controlar as populações de insetos e aracnídeos e servem de comida para aves, répteis e mamíferos. A Mata Atlântica tem um dos maiores percentuais de espécies únicas do mundo, cerca de 90% de seus anfíbios existem somente no bioma.