Vítima afirma que foi estuprada diariamente por policiais militares enquanto cumpria pena em cela mista
Uma mulher indígena foi mantida presa durante nove meses em uma cela masculina da delegacia de Santo Antônio do Içá, a 880 km de Manaus, onde, segundo denúncia formalizada à justiça, foi estuprada diariamente por policiais militares. O caso foi revelado pelo portal Sumaúma, que teve acesso ao processo judicial em que a vítima solicita indenização de R$ 500 mil por danos morais e materiais. O Estado do Amazonas reconheceu a responsabilidade, mas ofereceu apenas R$ 50 mil como compensação, valor considerado “flagrantemente inadequado” pela defesa. A mulher foi presa em novembro de 2022 após uma denúncia de violência doméstica contra o então companheiro.
Na delegacia, os policiais identificaram que havia um mandado de prisão em aberto contra ela, relacionado a uma condenação por homicídio em 2018, na capital amazonense, pena que ela nega, mas que já transitou em julgado, o que impede novos recursos. Como a cidade não possui presídios, a indígena foi mantida na carceragem da própria delegacia, compartilhando cela com homens e em condições que a denúncia descreve como insalubres e superlotadas. “Palco de profunda aflição, transformou-se em cenário de horrores para a autora”, diz o processo, que inclui uma foto da vítima deitada ao lado de dois homens.
Segundo relato da mulher, os abusos começaram assim que chegou ao local. Aconteciam durante a noite, todas as noites, durante o plantão dos policiais e ocorriam em todas as partes da delegacia, na cela, na sala em que guardavam as armas, não tinha local fixo. Segundo a vítima, os policiais faziam o que eles queriam, e os três presos que estavam na mesma cela sabem que os policiais fazem isso com as mulheres, mas não podem fazer nada porque são torturados. A vítima cita cinco agentes como responsáveis pelas agressões, sendo quatro policiais militares e um guarda civil. Afirma também que era obrigada a ingerir bebidas alcoólicas e era silenciada com ameaças constantes. Durante esse período, chegou a tentar suicídio. O anoitecer na delegacia era o marco do início da violência sexual. Seu filho recém-nascido esteve ao seu lado e isso não deteve seus algozes, os estupros aconteciam com a criança posta ao lado.
Em julho de 2023, uma médica da Unidade Básica de Saúde do município atestou que a mulher apresentava quadro clínico grave de hemorroida grau 4, compatível com os abusos relatados, além de depressão e ideação suicida. A transferência para uma unidade prisional adequada em Manaus ocorreu apenas em 27 de agosto de 2023. No dia seguinte, ela passou por exame de corpo de delito. O laudo médico confirmou a conjunção carnal e registrou marcas de agressão na mama direita, abdômen e coluna.
Médico Legal do Amazonas atestando violência sexual contra a mulher indígena
reformada, pois era considerada uma masmorra – Foto: Sumaúma
Antes da transferência, a defesa tentou obter prisão domiciliar, com base na presença de filhos menores de 12 anos, mas o pedido foi negado. A defesa impetrou um habeas corpus na semana passada tentando novamente a prisão domiciliar e o processo está concluso para análise da liminar. Também foi pedido que o tempo em que ela esteve detida na delegacia seja contado em dobro para o cumprimento da pena.
O caso é acompanhado por órgãos como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Ministério Público do Amazonas (MP-AM), a Defensoria Pública e o povo indígena Kokama do Estado do Amazonas. O MP-AM reconheceu o direito da vítima à indenização por danos morais, argumentando que ela “permaneceu em cela mista e foi vítima de violência sexual”. No entanto, não viu motivo para reparação por danos materiais, sob a justificativa de que os atendimentos médicos foram prestados pelo SUS.
A Procuradoria do Estado do Amazonas ofereceu inicialmente uma compensação de R$ 34.707 (23 salários mínimos) e depois aumentou para R$ 50 mil. A proposta foi recusada pela defesa, que considera o valor irrisório diante da gravidade do caso, entendendo que valor algum possa sanar todo o sofrimento da vítima. Nos últimos parlatórios, ela estava visivelmente dopada por medicamentos. Até a publicação da matéria, a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM), responsável pelos agentes citados, não respondeu se reconhece as denúncias nem se há investigação interna em andamento.